O Relatório Mundial de Saúde Mental da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado em junho de 2022, traz a realidade nefasta que vem se constituindo no mercado de trabalho: o uso banalizado do assédio como prática empresarial de rotina para se extrair aumento de produtividade da classe trabalhadora. Segundo o relatório, os transtornos mentais atingem 15% dos trabalhadores adultos, sendo o bullying e a violência psicológica as principais queixas de assédio no local de trabalho. A instalação de ambientes competitivos, onde a lógica do mérito norteia o dia a dia e o outro passa a ser um concorrente, submete as pessoas a um ritmo de trabalho que esgota e ultrapassa todos os limites do próprio corpo. Com o consequente adoecimento, vem a sensação de desamparo já que não há espaço para denúncia dentro da empresa porque nela também não há espaço para acolhimento. Ao contrário disso, transtornos mentais são tidos, pela lógica empresarial, como fraqueza, como fracasso individual, como motivo para demissões.
Vivemos o capitalismo na sua forma mais perversa. Sua narrativa quer convencer o/a trabalhador/a de que o sofrimento causado pelo excesso constante de demandas, com prazos cada vez mais curtos, é de responsabilidade do/da próprio/a profissional, fruto de performances insuficientes e acomodadas a sua zona de conforto. Conforto é algo impensável na atual gestão de trabalhadores. A ideia é extrair o máximo de exploração, convencendo a classe trabalhadora de que o sofrimento é uma experiência psíquica natural, que pode ser regulada e administrada pelo patrão, pelo diretor da escola, pela medicina e pelo próprio trabalhador.
A indústria farmacêutica se aproveita desses processos de adoecimento, cada vez mais comuns, naturalizados e negligenciados, para produzir e vender vários tipos de medicamentos que, na verdade, manterão trabalhadores e trabalhadoras em condições de suportar sua superexploração e seu sofrimento por mais algum tempo.
O contexto do desemprego facilita a aceitação do trabalho precarizado e é um instrumento importante na manutenção da submissão que o capitalismo impõe à classe trabalhadora. Mas a narrativa capitalista neoliberal coloca o trabalhador como colaborador e empreendedor, como alguém que só está submisso a si mesmo, autossuficiente, capaz de, “livremente”, pedir demissão, caso não esteja satisfeito, ou aumentar mais e mais o seu desempenho num esforço individual que se basta, que não precisa da proteção do Estado, das leis, dos sindicatos. A narrativa capitalista neoliberal quer produzir subjetividades que naturalizem e se tornem gerentes da sua própria exploração, numa autocobrança que escraviza e tira do sujeito a sua condição de ser humano.
Dentro desse contexto de exploração neoliberal, é importante ressaltar que apesar da passagem dos séculos, alguns aspectos do trabalho das mulheres permanecem idênticos, como as diferenças salariais, a significativa concentração em setores e ocupações com estereótipos de gênero, a inserção em formas de trabalho mais precárias e o grande volume de horas dedicadas ao trabalho de cuidados e afazeres domésticos, em adição à jornada de trabalho fora de casa. A divisão sexual do trabalho se apresenta na base social da opressão e da desigualdade. Ainda que as mudanças nas estruturas ocupacionais – resultado das transformações tecnológicas e das formas de organização dos processos de trabalho – tenham gerado novas ocupações, persistem alguns atributos a elas associados e que as acompanham na sua inserção no mundo produtivo.
As mulheres estão nas duas esferas, no trabalho produtivo e no reprodutivo, o que gera uma sobrecarga física e psicológica sobre elas. Isso se reflete em números. Segundo pesquisa da Lab Think Olga (2019), a cada dez brasileiros com ansiedade e depressão, sete são mulheres. O número, certamente pode ser explicado pela sobrecarga de responsabilidades, acúmulo de trabalho profissional com os chamados trabalhos do cuidado. Mulheres seguem sendo as que mais sofrem com assédios e demissões após licença parental. Quando o assunto é saúde mental, o quadro é ainda mais alarmante para as mulheres, que são duas vezes mais propensas a problemas como depressão, por exemplo, do que os homens. A doença é mais comum entre 5,1% das mulheres do que os homens, com 3,6%, de acordo com a OMS. Muitas vezes, esses quadros estão relacionados a excesso de trabalho, situações de assédio moral e sexual em seus locais de trabalho. Em relação à ansiedade, 18,6 milhões (9,3%) de brasileiros sofrem com o transtorno. No recorte de gênero, o transtorno de ansiedade atinge 7,7% da população feminina e 3,6% dos homens. Mulheres negras sofrem ainda mais pois passam por discriminação desde a seleção para o trabalho até a sua permanência no mesmo. Pessoas LGBTQIA+ precisam, muitas vezes, esconder sua orientação sexual, fingir o que não são para preservarem seus empregos. As pessoas trans e travestis sequer conseguem ingressar no mercado de trabalho, antes, precisam lutar para se manter vivas! A sociedade capitalista é excludente. O mercado de trabalho expressa essa exclusão, sobretudo, com as camadas racializadas e vulnerabilizadas da população.
Vivemos o exercício mais cruel da luta de classes expresso na solidão individualista, precarizada e doentia a que o trabalhador e a trabalhadora são submetidos, que nega a força da ação coletiva, que nega a potência da solidariedade para continuar permitindo a acumulação máxima de riqueza por parte de uns poucos privilegiados.
Não é à toa que a Educação vem sendo alvo de ataques frequentes porque ainda é um lugar de convívio, de troca, onde existe um debate coletivo e democrático. Não é à toa que professores e professoras sofrem um processo crescente de desvalorização, assédio e precarização nas relações de trabalho. A Educação é uma ameaça porque pode ser um espaço emancipador, que possibilite o entendimento de que tudo o que começa, historicamente, também pode terminar, até mesmo a expropriação capitalista. A classe dominante quer um trabalhador sozinho, vulnerável e isolado, mas a história demonstra que os direitos trabalhistas, conquistados com pressão coletiva e luta sindical, proporcionaram conquistas como a diminuição de desigualdades sociais e que, por outro lado, a retirada de direitos coloca o povo na pobreza e no abandono.
Uma democracia demanda representatividade social. Uma democracia também precisa de entidades sindicais (sindicatos, federações, confederações) que sejam instrumentos de luta coletiva por uma sociedade pensada e construída pela e para a classe trabalhadora, que não seja impulsionada pelo lucro desmedido de uns, mas pelas reais demandas e desejos da grande maioria da população, que tem o direito de viver com dignidade e ter a sua humanidade respeitada.
Nossas referências e indicações:
– Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Organizadores: Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior, Christian Dunker.
– Relatório Mundial de Saúde Mental da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado em junho de 2022.
– O patriarcado do salário. Silvia Federici.
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Este post foi publicado em
02/10/2023 às
11:06
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